[ilustração de Alberto Godoy, artista cubano, 2003]
"nosso amor deu tão certo
que começarão a nos olhar com inveja
e acabarão organizando
romarias
para vir nos perguntar
como fizemos."
[Mario Benedetti (1920-2009), poeta uruguaio, autor do poema "Lovers go home"]
Eu posso esquecer a receita do minestrone da avó.
Eu posso esquecer a loja em que comprei a calça preta favorita.
Eu posso esquecer o restaurante que escolhemos para passar a virada do ano e o coquetel flamejante que bebemos, desculpa, fumamos (era a nossa piada).
Eu posso esquecer o autor do verso "nunca me perdi de vista: detestei-me, adorei-me, depois envelhecemos juntos".
Eu posso esquecer o esconderijo dos óculos de sol.
Eu posso esquecer que toalha de crochê tem um lado certo.
Eu posso esquecer de desligar o alarme do celular, agendado na manhã anterior.
Eu posso esquecer que o carnê do carro vence no dia 7.
Eu posso esquecer a melhor marca de azeite.
Eu posso esquecer o diretor do filme em que um casal está perdido em Tóquio.
Eu posso esquecer os aniversários dos sobrinhos.
Eu posso esquecer que você odeia aspargos, mas gosta de palmito (o inverso de mim).
Eu posso esquecer de deixar a luz acesa no corredor, já que tem medo de atravessá-lo durante a madrugada.
Eu posso esquecer minha mania de enfiar os chinelos debaixo da cama e procurar o par pela casa inteira.
Eu posso esquecer qual é a rua do sapateiro para salvar a sola dos meus sapatos.
Eu posso esquecer o que significa tramela.
Eu posso esquecer as diferenças entre o jasmineiro e o jacarandá.
Eu posso esquecer se desliguei a cafeteira ou fechei a porta.
Eu posso esquecer o nome de nossos vizinhos.
Eu posso esquecer de temperar o bife.
Eu posso esquecer a capital de El Salvador.
Eu posso esquecer de colocar protetor ao jogar futebol.
Eu posso esquecer daquele perfume de figo que você usa, adquirido na Itália.
Eu posso esquecer de levar meus casacos à lavanderia.
Eu posso esquecer de responder e-mails de pedidos de entrevista.
Eu posso esquecer de fazer a cópia da chave da correspondência.
Eu posso esquecer da revisão do carro a cada 10 mil quilômetros.
Eu posso esquecer a lista dos anjos que decorei na infância ou como se chama a cobra que morde o rabo. Eu posso esquecer de ajeitar a unha do pé direito, que dói ao caminhar muito.
Eu posso esquecer as exceções da crase.
Não morro de inveja de quem lembra de tudo, e esqueceu de amar.
Tenho amor, não tenho memória.
Posso esquecer tudo, menos de você que me acompanha desde sempre. Você me lembra do que vivo esquecendo.
[Fabrício Carpinejar, crônica 'Esquecido, mas feliz', publicado no jornal Zero Hora, 8/1/2013]
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