[arte de Edgar Degas]
Eu tomava ônibus em viagens mais longas com meu travesseiro.
Um longo travesseiro pendurado no braço, além da mala e do ar madrugado.
Era o equivalente a levar uma centelha de casa para um lugar impessoal. Era um resto do quarto. Um pedaço da cama. Enganava o desconforto da poltrona com a intimidade de um capricho pessoal. Facilitava meu descanso entre o corredor escuro e a janela de luzes bruxuleantes.
Ficava menos enjoado da mistura de diesel, de couro e cortinas antigas. O travesseiro é leal porque traz o cheiro do passado.
Ainda observo muitos passageiros, entre crianças, jovens e velhos, carregando o travesseiro na rodoviária. São figuras engraçadas, a arrastar o casaco da infância. Segurando o pano como um filho dormindo, a manter os cuidados do leite e do peito.
Quando embarcamos num amor, levamos o travesseiro. O travesseiro é o que temos de mais particular. Mas quem nos recebe pode identificar nele simplesmente um pano velho. Uma superstição. Um laço antigo. Uma teimosia. Não enxerga que uma vida nova não apaga a vida anterior.
Pode não ser o travesseiro, pode ser uma frase, um gesto, um ritual familiar, que vale muito e que carregamos conosco.Um objeto que nos identifique. Que diga de onde viemos e que mostre que temos uma história.
Há a ideia de que o amor é ambição. A maioria não entende que ele cabe num travesseiro.
Por mais que se dê linguagem e atenção, o outro achará pouco. Por mais que se cozinhe, faça surpresas, leve a amizade para passear de mãos dadas, o outro achará pouco. Por mais que se apaixone e se enlouqueça, que mude os hábitos, o outro achará pouco. Por mais que se abra a memória, confidencie segredos, o outro achará pouco. Por mais que se transe na mesa, costure as roupas, ajude nas economias, inspire o trabalho, o outro achará pouco. Por mais que se pouse, que se proteja, o outro achará pouco.
E damos tudo que temos, e o outro achará pouco. E damos tudo que poderemos ser, e o outro achará pouco. Sempre pouco.
Falimos, e o outro achará pouco. Nascemos de novo, e o outro achará pouco. Morremos de novo, e o outro achará pouco. Exaustos, arrebentamos o travesseiro e não entendemos como as penas já souberam voar.
Pouco, pouco, pouco.
Quem achou pouco, não entende de amor. Quando se ama, acorda-se vestido para o milagre.
[Fabrício Carpinejar, crônica 'Bordado com as Iniciais' do livro Canalha!, Editora Bertrand Brasil]
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